Um conto medieval sobre os obscuros juízos de Deus
Uma história sobre os misteriosos propósitos de Deus. Um conto medieval, do séc. 13 (a cerca de 800 anos), chamado "Da astúcia do demônio, e de como são obscuros os juízos de Deus", reproduzido no livro Histórias Medievais, de Hermann Hesse.
Uma explicação devida: eu não creio na doutrina de que algum mal que você sofra nesta vida possa apagar ou compensar um pecado que você cometeu ou, muito menos, te livrar do inferno. Eu creio que a única coisa que pode nos livrar do inferno é a graça de Deus revelada na morte de Jesus na cruz por todo pecador arrependido.
Então por que eu estou colocando este conto aqui? Por causa da conclusão dele: Os propósitos e desígnios de Deus quase nunca são compreendidos pela razão humana, mas sempre são bons e justos!
Da astúcia do demônio, e de como são obscuros os juízos de Deus
Existiu um eremita, que morava num cômodo de uma ermida [ermida é pequena igreja ou capela em lugar ermo ou fora de uma povoação] e dia e noite servia a Deus da maneira mais devota; mas um dia apareceu ao lado do seu quartinho um pastor que pastoreava algumas ovelhas; certo dia o pastor foi dominado pelo sono, e veio um ladrão que lhe roubou todo o rebanho. Depois disso chegou o dono das ovelhas, que perguntou ao pastor onde estava o seu rebanho. O pastor começou a jurar que perdera as ovelhas mas que não sabia como aconteceu. Escutando isso, o dono das ovelhas ficou furioso e o matou.
Vendo o que acontecera, o eremita disse em seu coração: ó meu Deus, esse homem acusou e matou uma pessoa inocente. Porque admites uma coisa dessa? Voltarei ao mundo, e viverei como os demais. Assim, o eremita deixou sua ermida e preparou-se para voltar ao mundo; mas Deus não o queria ver prejudicado, e mandou um anjo em forma humana para que se juntasse a ele.
Quando o anjo encontrou o eremita na estrada, disse-lhe: Meu caro: aonde leva o teu caminho? E o eremita respondeu: para aquela cidade que fica diante de mim. Mas o anjo lhe disse: quero te acompanhar no caminho, pois sou um anjo de Deus e vim a ti para andarmos juntos.
Então os dois, o anjo e o agora ex eremita, foram juntos à cidade, e quando entraram nela, pediram a um guerreiro, que, pelo amor de Deus, lhes desse acolhida. O cavalheiro os recebeu muito amavelmente, servindo-lhes da maneira mais cavalheiresca e honrosa, com grande humildade; aquele guerreiro tinha no berço o seu único filho, a quem amava ternamente, e ao anoitecer, após terem comido, ele lhes abriram os aposentos, arrumando camas decentes para o anjo e o eremita. Mas, pela meia-noite, o anjo se levantou e matou estrangulado o filho do guerreiro no seu berço. Vendo isso o eremita pensou: esse já não é um anjo de Deus, pois aquele bom soldado lhe deu abrigo por amor de Deus, e não tinha senão esse filhinho inocente que agora ele matou. Mas o eremita não se atrevia a dizer nada a ninguém. Levantaram-se cedo e dirigiram-se a outra cidade, onde foram recebidos com grande honra na casa de um burguês, onde foram admiravelmente servidos.
Esse burguês tinha um cálice de ouro de que gostava sobremaneira e do qual se orgulhava muito. Pela meia-noite, porém, o anjo ergueu-se e roubou o cálice. Vendo isso o eremita pensou: julgo que esse seja mesmo um anjo mau, pois esse burguês nos fez benefícios e em troca ele lhe roubou o cálice. E não disse nada ao anjo, pois tinha muito medo dele. Mas logo cedo levantaram-se e fizeram seu caminho.
Ao chegarem a um lago, sobre o qual havia uma ponte, subiram nela e encontraram um homem pobre. O anjo lhe disse: meu caro, mostre-me o caminho para a cidade; o homem virou-se e indicou com o dedo a direção da cidade. Porém, ao se virar para eles, o anjo o pegou pelos ombros e o jogou de sobre a ponte, e o homem logo se afogou.
Vendo isso o eremita disse em seu coração: agora seu que ele é o diabo e não um anjo bom de Deus, pois aquele homem pobre não fez mal algum, e ainda assim ele o matou. E pensou então o eremita em livrar-se dele, mas de medo não lhe disse nada.
Quando, ao entardecer, chegaram à cidade, entraram na casa de um rico, e pediram pelo amor de Deus, um abrigo para passar a noite, mas ele negou-se, categoricamente. Então o anjo lhe disse: pelo amor de Deus, deixai-nos subir ao menos no telhado de vossa casa, para que os lobos e os animais selvagens não nos devorem.
O rico então respondeu: Vejam, ali está o chiqueiro, onde moram os meus porcos. Se lhes agradar, podem dormir nele; caso contrário, afastem-se de mim pois não lhes arranjarei outro lugar. E o anjo respondeu: se não puder ser de outro modo, ficaremos com os vossos porcos. E foi isso o que aconteceu. Cedo de manhã levantaram-se, e o anjo falou ao hospedeiro: meu caro: dou-te um cálice de presente. E dizendo isso, deu-lhe o cálice que roubara do burguês.
Vendo isso o eremita disse no seu íntimo: agora sei ao certo que esse anjo é um demônio: aquele burguês foi um bom homem, que nos recebeu com humildade e a ele roubou-lhe o cálice dando a esse patife que não quis nos dar abrigo. E disse então ao anjo: não quero mais esperar por vós e ordeno que volte para Deus.
Então o anjo [que agora se manifesta] lhe disse: ouve, e depois poderás ir: vivias antigamente numa ermida e viu o dono daquelas ovelhas matar aquele pastor; o pastor não merecera a morte, pois outro cometera o crime, portanto ele não deveria ter morrido, mas Deus permitiu que ele fosse morto, para que com esse castigo se salvasse da morte eterna, por causa dum pecado que cometera no passado, e que nunca pagara. Mas o ladrão que roubou as ovelhas, esse sim, sofrerá castigo eterno. O dono das ovelhas, o homem que matou o pastor, pagará penitências a vida toda, dando generosamente esmolas e fazendo obras de misericórdias pelo crime que cometeu injustamente.
É verdade que matei à noite o filho daquele guerreiro que nos deu tão bom abrigo, mas deverás saber que antes que aquele menino nascesse o seu pai soldado era o mais generoso doador de esmolas e fazia muitas obras de caridade, mas depois que o menino nasceu ele se tornou avarento e ambicioso, juntando tudo o que podia para que o filho ficasse rico. Desse modo, o filho foi a causa da sua degeneração, por isso o matei. E agora, o soldado voltou a ser o que era antes, um bom cristão.
Também é verdade que roubei o cálice do burguês, que nos recebeu com tamanha humildade, mas deverás saber que antes que fizesse aquele cálice, não havia no mundo homem mais sóbrio, mas depois que lhe fizeram o cálice, ele se alegrou tanto com isso que bebia nele o dia inteiro, embriagando-se duas ou três vezes diariamente, por isso lhe tirei o cálice; e ele está, outra vez, sóbrio como era antes.
Quanto ao pobre, que lancei na água, deverás saber que aquele pobre era um bom cristão, mas se andasse ainda a metade do seu caminho, teria cometido um pecado mortal, matando um outro homem, agora, porém, está salvo, entronizado nas honras celestiais.
E, finalmente, dei sim o cálice do burguês ao que nos negou abrigo, mas fica sabendo, que nada acontece sem razão nessa Terra: ele nos concedeu lugar num chiqueiro e por isso lhe dei o cálice, e quando morrer, será certamente entronizado no inferno. Portanto, controla a tua língua, para que não censures a Deus, que sabe TUDO.
Ouvindo isso, o eremita caiu diante do Anjo, pedindo perdão, depois voltou para sua ermida e tornou-se um bom cristão.
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